Por Tania Almeida*

A primeira edição de ‘Negotiating at an Uneven Table: A Practical Approach to Working with Difference and Diversity’ – “Negociando em uma mesa desbalanceada: uma abordagem prática para trabalhar com a diferença e a diversidade” data de 1994, época em que Phyllis Beck Kritek já transitava na área do treinamento em resolução de controvérsias, articulando comunicação com liderança e gênero.

No livro, a autora se dedica a compartilhar atitudes que possam endereçar construtivamente a falta de equidade e a diversidade em uma mesa de negociação. Sem esgotar o tema, Phyllis transita progressivamente por: (i) contextos negociais de aparente desbalance e (ii) por abordagens tradicionalmente utilizadas em negociações dessa natureza, até nos conduzir para (iii) manejos construtivos de mesas desbalanceadas.

Os desbalances clássicos – hierárquicos, por exemplo, – são aparentes e facilmente percebidos -, mas algumas situações de desbalance podem passar despercebidas e terem traduções desfavoráveis nos resultados de uma negociação, se não trabalhadas adequadamente durante o seu curso.

A intenção finalística de Phyllis é compartilhar atitudes que negociadores possam adotar para lidar com mesas desbalanceadas. O conceito de desbalance é metafórico, e fala de ausência de equidade, de desequilíbrio em algum ou vários aspectos que envolvem uma negociação.

Os naturais desbalances dos contextos negociais

A autora inicia a obra, abordando aspectos inerentes aos contextos de diálogo:

(i) cada um terá uma versão distinta do objeto/evento que motiva a conversa, a partir de sua própria construção social – que edifica preconceitos, prós e contras, e enfatiza ou minimiza aspectos ou questões trazidas à mesa;

(ii) cada um trará interesses particulares – que se traduzem em maior ou menor rigidez na participação e na defesa de ideias, maior ou menor exercício de poder relativo ao tema, ou à relação com os demais.

Cabe aqui um parêntese para mencionar que o exercício de poder em uma interação se alterna entre os participantes, e que a disputa pelo poder estará sempre presente. O filósofo Michel Foucault nos afirmou que a pergunta a ser invariavelmente feita seria “Como o poder está sendo manejado em cada relação?” E eu acrescentaria: em um determinado momento.

Menciono como alerta que nossa percepção tende a colocar foco em formas mais clássicas de exercício de poder (patrão / empregado, chefia / equipe) e fica menos sensível ao quanto posições frágeis podem exercer enorme controle em uma relação e em uma negociação. A fragilidade pode ser uma relevante moeda de exercício de poder.

Em adição aos ingredientes trazidos por Phyllis para um contexto negocial, precisaríamos considerar que haverá sempre desbalances naturais em uma mesa de conversa: na forma de comunicação, nas habilidades negociais, no que possa culturalmente parecer mais adequado ou não, mais razoável ou não. Ou seja, não há mesas naturalmente balanceadas em uma negociação. Negociar é um processo complexo que coloca em campo e em conversa uma diversidade de aspectos culturais, pessoais, relacionais, materiais e imateriais.

Abordagens tradicionais em mesas desbalanceadas

Phyllis usa a expressão manipulação para se referir a um conjunto de atitudes que não seriam desejáveis à mesa de negociações. A expressão manipulação estaria sendo utilizada para atos e atitudes que francamente favorecem os interesses de alguns, e não de outros, podendo se dar às claras (de mais fácil identificação) ou veladamente.

Nessa direção, a mentira, a traição, a trapaça, a construção deliberada de impasses, o cinismo, o ataque e as propostas que distratam o outro podem estar presentes em modelos antigos de negociação, desequilibrando visivelmente a mesa.

No texto de Phyllis, no entanto, há também menção a uma série de recursos de manipulação mascarados (masks of manipulation), que podem se apresentar de forma consciente ou inconsciente. A lista passa por elogios, bajulações, gentilezas, generosidades, reverências, paqueras e chega ao entorpecimento emocional que faz o outro refém, além da projeção – colocar no outro aspectos que pertencem àquele que projeta -, todas, atitudes que podem passar despercebidas por quem integra uma negociação, e eu diria, pelo terceiro facilitador de um diálogo.

Maneiras construtivas de manejar uma mesa desbalanceada

A escritora Phyllis Beck Kritek afirma que aprimorar habilidades (skills) não transforma pessoas nem relacionamentos, sendo necessário algo a mais. Reforça essa ideia assegurando que não há respostas simples para situações complexas e que as mudanças precisam ser orgânicas. E nessa linha, fala de transformações individuais na maneira de entender e de ver as situações em geral, para além das questões negociadas. Ou seja, estaria em cada um de nós o conjunto de recursos que favoreceria lidar com a diversidade e as mesas desbalanceadas de maneira mais sistêmica – esse seria o algo a mais, o olhar sistêmico da situação (considerar diferentes fatores em articulação e interdependência) e nos implicarmos no manejo do desbalance.

Phyllis chama a atenção para bases da física quântica que desfazem a ideia de um observador isento e demonstram que o objeto será sempre descrito de acordo com o lugar que ocupa cada observador: onde você está, como você olha, o que você procura, por que e quando você olha, e com que velocidade olha são elementos que interferem na descrição dos objetos e dos fatos.

Evoca o físico e filósofo Thomaz Kuhn e sua ideia de paradigma – efeito paradigma e paralisia paradigmática – que transforma o observador em prisioneiro de suas crenças, na medida em que vai a campo confirmar hipóteses mais do que identificar o novo com curiosidade genuína. A noção de verdade única que o filósofo Immanuel Kant ajudou o mundo, especialmente o jurídico, a acreditar, cai por terra. A ideia de causalidade linear, demonstrando que nossas intervenções atuam mecânica e diretamente nos objetos alterando resultados, cai junto.

Ter conhecimento sobre esses aspectos, presentes no cenário onde os entendimentos e os desentendimentos se dão, é primordial. Reside nesse cenário mais complexo a percepção da legitimidade e admissibilidade da diversidade e das diferenças de toda ordem. Essa admissão impacta substancialmente o ato de escuta e sua busca por entender a motivação, as intenções e sentimentos do outro (compaixão), e por identificar o que é comum, convergente e complementar, eu acrescentaria.

“Comunicar a própria motivação, intenções e sentimentos, verdadeiramente e com clareza, assim como reconhecer as próprias ambiguidades expandem o contexto e as fronteiras do conflito e da conversa, mais do que estar focado em eventual desbalance, cedendo espaço ao medo e a apreensões”

Estar bem informado sobre os temas a serem tratados na negociação – mapear o que sabe a respeito e o que desconhece -, aprender com o outro sem ser defensivo, atuar com criatividade e humor e, sobretudo, se manter em diálogo, identificando oportunidades para o entendimento e reconhecendo sua interdependência do outro para resolver a questão, são dicas de atitudes construtivas oferecidas pela autora em “Negociando em uma mesa desbalanceada”.

Phyllis orienta cada negociador a identificar o limite para se manter à mesa de negociações – quando e como retirar-se. A indisponibilidade do outro para negociar é um direito que ele tem, diz a autora. É um problema seu, e não dele. Depois de tentar utilizar os recursos mencionados acima, que lidam construtivamente com o desbalance, deixar uma mesa de negociação pode ser um ato de coragem, autovalorização e integridade. E eu complementaria: conhecer sua BATNA (Better Alternative to a Negotiated Agreement) e identificar alternativas que enderecem melhor seus interesses, necessidades e valores, auxiliam nessa natureza de decisão.

Penso que todas essas recomendações de Phyllis para manejarmos nossa passagem por uma mesa desbalanceada podem também ser úteis quando atuamos como facilitadores de diálogos, auxiliando pessoas a considerarem e a utilizarem as atitudes mencionadas pela autora, visando a levarem as suas melhores competências para uma mesa de negociação, em cenário dessa natureza.

Como William Ury em ‘Como Chegar ao Sim consigo mesmo’, Phyllis traz para o colo de cada negociador a responsabilidade por melhores resultados em uma mesa de negociação. E por falar em ‘Como Chegar ao Sim consigo mesmo’, vamos explorar as dicas do autor na próxima edição de Leia Comigo. Até lá!

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Negociando em uma mesa desbalanceada – uma abordagem prática para trabalhar com a diferença e a diversidade, de Phyllis Beck Kritek
339 páginas

 

 

 

 

 

* Tania Almeida – Mestre em Mediação de Conflitos e Facilitadora de Diálogos entre pessoas físicas e/ou jurídicas. Há 40 anos desenha e coordena processos de diálogo voltados ao mapeamento, à prevenção de crises, à administração de mudanças e à resolução de conflitos. É idealizadora e fundadora do Sistema MEDIARE, um conjunto de três entidades dedicadas ao diálogo – pesquisas, prestação de serviços, ensino e projetos sociais.

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